Quem vem lá?

terça-feira, 26 de maio de 2009

Amor de correio



O relógio já anunciava dez da noite naquele domingo e Cássio começava despedir-se de Lucília, dedicada estudante de enfermagem. A cena se repetia há sete anos. Quatro de namoro, três de noivado. Um beijo na testa, depois, um cada mão, para terminar, na boca. Mas sem língua porque o pai dela ficava esperando. Já na rua, buzinava com a moto que conseguiu comprar a uma porrada de prestações, graças ao trabalho no correio.
Voando baixo pelos corredores de automóveis, um pensamento lhe ocorreu: Amanhã seria segunda. Com certeza aquela menina apareceria para enviar uma carta. Há algumas semanas ela ia todas as segundas ao correio. Por um momento o tédio dominical foi embora e seu peito encheu-se de euforia. Só não entendia por que. Ela havia de ter no máximo uns 25 anos, era um pouco mal arrumada e tinha os cabelos lisos naturais sempre presos. Era tudo o que ele sabia sobre a menina. A não ser, é claro, que seu nome era Melissa, e que mantinha, com devoção, o hábito de enviar uma carta por semana a alguém chamado Gustavo, na Inglaterra.

Lá pelo meio dia, já sonhando com a quentinha que estava em banho-maria, Cássio viu o ônibus sair devagar do ponto e lá estava a moça, sozinha, procurando algo na bolsa. Perdeu a fome, carimbou o dedo, tirou os óculos. A menina achou um frasco de perfume, borrifou na carta, atravessou a rua e entrou na fila. O ambiente foi tomado por um cheiro doce e, com apenas duas pessoas na frente, ela conferia colocando a carta próxima ao nariz. Cássio teve uma vontade quase infantil de colocar a boca na carta, onde provavelmente ela teria encostado a dela. Chegou sua vez. Ele sorriu:
- Pra Inglaterra, de novo?
A falta de reciprocidade no sorriso o constrangeu. Fingiu que colocou a carta na pequena urna, mas deixou ao lado. A menina pagou e saiu. Cássio não conseguia pensar direito o resto do expediente, ficava indagado sobre a quantidade de desejos e idéias que aquela desconhecida lhe causava. Tinha vontade de tocar a mão dela ao pegar o dinheiro, ficava olhando sua boca e demorando pra fazer tudo. O toque no seu mindinho lhe era mais prazeroso do que todas as noites que conseguiu fugir com Lucília para o motel.
No fim do dia, pegou a carta, sentiu o cheiro e imaginou aquela menina, virou e leu de novo “Gustavo”... “Filho da puta de sorte”, “Quem será?”. Olhou o envelope contra a luz e pôde ver corações. Encheu-se de encanto. Ela havia de ser mesmo muito especial. Quem, em tempos de msn, sms e outras siglas mais, se prontificaria a escrever uma carta, colar corações, manchar com perfume as letras escritas à mão e ainda enviar uma diferente a cada semana?

No próximo domingo, lá estava na casa da noiva, sob o olhar atento do sogro, perguntou a ela se ele fosse pra fora do País, por qualquer motivo que fosse, se lhe escreveria cartas. Foi quando ela teve a brochante resposta:
- Ah Cássio, ir pra fora do País, com o que você ganha? Mais fácil eu mandar cartas se você for pra cadeia.
Aquele dia foi embora 21h30. Mal podia esperar a segunda feira para sentir de novo aquele cheiro doce e achava-se ridículo pelo ciúme que lhe acometia cada vez que pensava em quem seria o destinatário das cartas. Poderia ser um irmão, um primo, um soldado na família, sei lá... Consolava-se.
Segunda-feira a rotina se cumpria, mas dessa vez resolveu ousar. Tirou a aliança da mão direita, e se encheu de coragem quando chegou a vez dela. Gaguejou:
- Oi, você de novo.
- Carta prioritária, por favor. O prazo é de sete a 12 dias úteis para chegar, não é?
- Tem pressa? (pegando o dinheiro e encostando a mão suada nas costas da mão dela)
- Obrigada. Bom dia.

“ Ah que mulher”, pensou enquanto enfiava a carta debaixo da camiseta. Fim de expediente. Ficou sozinho no correio com a desculpa de pesquisar umas coisas na internet. Fez outro envelope com os dados contidos naquele de cheiro tão bom e abriu, afoito por confirmar suas fantasias. Nas palavras, um amor paciente e tranqüilo. E muito, muito real. Ela o esperaria por um ano, para que ele estudasse e trabalhasse na gringa.
Imaginou que o tal cara lá da puta que pariu poderia beijar aquela boca rosinha a hora que quisesse, poderia ter seu corpo, e sentir aquele cheiro. E devia gostar de ser alvo de todo aquele amor. Quanta injustiça. O cara devia enganá-la enquanto ela ficava aqui sozinha. Sim, porque ela não tinha cara de dadeira igual às minas da vila dele. E toda mulher tem sua vida sexual estampada na cara, achava ele.

Com a carta nas mãos, tremia e pensava alto. Foi quando seu chefe entrou de repente, estava lá para garantir a saída de Cássio, achou perigoso o funcionário ficar só. O pobre rapaz tentou disfarçar, se enrolou, tentou esconder a carta, mas não funcionou. Demitido. Sem grana e sem perspectiva, Lúcília deu-lhe um pé na bunda com o apoio do pai. Cássio se lembrou de quando era moleque e fazia uns graffitis. Chamado de vagabundo diariamente pela mãe, passava as tardes às voltas com sprays, rolinhos, estêncil e muitas cores.
Sua inspiração vinha sempre de Melissa, de sua devoção, as cartas partindo em navios e aviões, sua boca rosinha. Ficou famoso na vila, na cidade, e logo o chamaram pra participar de um filme publicitário. Mandava muito bem e havia esquecido disso. Tinha que trabalhar, pra casar, fazer o quê. O filme seria gravado no exterior e ele gastou a última grana que tinha pra tirar passaporte. E lá foi ele, rumo à Inglaterra. Ficava olhando os caras nas ruas e imaginando que todos poderiam ser o tal Gustavo.
Fez o filme, emendou em outro trampo, precisou tirar um visto para mais tempo. Ligou pra mãe no Brasil, vendeu a motoca e por lá ficou. Longe dos Correios, da noiva, nunca mais viu Melissa, apesar de sonhar com ela quase todas as noites. Ele só queria poder agradecer a mudança que ela sem querer ocasionou em sua vida com suas cartinhas.

domingo, 24 de maio de 2009

Efeitos e recordações


Certa vez estive em Campo Grande e na casa que fiquei tinha um cachorro. O nome dele era Thor. Não sei de que raça ele era, mas era bem magrelo, peludo e alto. O Thor vivia abanando o rabo e querendo atenção, mas ninguém dava. Até aí nada muito incomum prum cachorro. A questão é que ele me causava dó. Não sei explicar, mas só de olhar pra ele me dava vontade de chorar. Sei que era feliz, tinha comida, espaço, e um dia pegou todas as minhas calcinhas do varal e espalhou pelo quintal e até pela rua. Não tive coragem de dar um safanão nele. Uma manhã estava indo pra TV (fui pra lá fazer um estágio), toda prontinha, e o Thor veio correndo e pulou com as patas de lama na minha camisa branca. E eu, acostumada com o Tom Zé (meu cachorro, um boxer parrudo), empurrei o coitado do Thor pra longe, ele voou. Caiu todo espatifado e não parou de abanar o rabo. Talvez fosse isso mesmo que ele queria, uma reação minha. Porque mesmo a minha fúria seria melhor que indiferença. Logo ele, um cachorro tão belo, de raça. Tinha muitas qualidades, era amestrado, sabia dar a patinha, deitar, e era muito bonito, muitíssimo bonito. Acho que ele ficava revoltado de ser assim tão foda e ninguém dar muita atenção. Por isso ele pegava minhas calcinhas, pulava na minha frente e ficou feliz quando o joguei pra longe. Acho que ele se machucou, mas gostou da dor. Alguém o havia pegado de jeito pela primeira vez, nem que fosse pra jogá-lo contra a parede. Acho que ficou satisfeito.
Todo mundo foi viajar e eu fiquei sozinha com o Thor. Dava comida pra ele e expulsava-o dos cantos da casa onde ele não podia entrar, ele não gostava de limites. E me dava muita dó. Não sei por que, mas vendo-o pela janela sozinho, cheirando as coisas, indo atrás de qualquer pessoa que lhe dava o mínimo de atenção me causava muita pena mesmo. Durante essa viagem rolou uma das noites mais bonitas que eu já vi. Eu cheguei tarde em casa, e o Thor estava lá, olhando a lua. Sentei na varanda e resolvi lhe fazer companhia, ele estava calmo, menos afoito. Não pulou, não fez estardalhaço, nem exigiu minha atenção. E por isso mesmo eu tive vontade de ficar perto dele. Fiz carinho na barriguinha, tirei pulguinha... Ficamos ali contemplando a noite. Na verdade eu também me sentia sozinha. Nós aplacávamos ali, a solidão um do outro. E ele sabia ser uma boa companhia quando queria. Já de volta pra casa, lembrava sempre daquele cachorro, de como era deprimente vê-lo querendo chamar atenção, de como havia de ser injusto pra ele, que era tão bonito e engraçado. Soube que o Thor morreu, fiquei muito chateada, me bateu uma baita culpa pelo dia que o joguei pra longe. Mas lembrei também, da noite de lua que curti com ele. E acho que se ele ainda pudesse dizer alguma coisa, talvez ficasse um pouco ressentido do tombo que dei nele, mas é certo que admitiria que nunca houve um cafuné na barriga como o meu.




foto: Pablo Nabarrete.
A lua vista da janela do quarto dele, em São Bernardo. Linda e cheia, como naquela noite em Campo Grande...

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Faz-me rir





Beijo me liga


- Parabéns pra nós dois. Tim tim.
- Ao que fomos, ao que somos ou ao que seremos?
- A tudo.
- Não, chega, desliga a merda dessa música.
- Por quê? É nossa música.
- Não tem mais nada de nosso aqui. Vai. Mas vai em silêncio. Pisa devagar, não faz estardalhaço. Não me acorde de novo à toa e nem finja sentir muito por isso.
- Mas eu sinto muito, de verdade, tá vendo, eu só queria brindar.
- Não atire em meus ouvidos palavras vãs para renunciar à sua participação no grande empurrão ao fundo de tudo.
- Não to querendo...
- Mas se prefere assim por mim também não faz diferença alguma, continue jogando o velho jogo dos perdedores, onde todos jogam, todos tem culpa e todos perdem no final. Cansei do seu jogo, e aceito perder de W.O, deixar a torcida atônita e não oferecer as próximas cenas patéticas desse circo de horrores pra quem já comprou a pipoca.
- Não é simples assim, você sabe, existem muitas mágoas.
- Fique você aí nessa arena. Fale sobre suas culpas e mágoas pra quem tiver tempo. Despeje sua raiva infanto-juvenil no ouvido de sua professora primária quando encontrá-la na rua e conseguir alcançá-la depois que ela fingir que não te viu.
- Vou sumir.
- Isso. Mude de calçada, de cidade, de planeta, mas faça em silêncio. Se hoje sou tomado por raiva, vai passar. Se hoje acordei com vontade de veneno, essa vontade vai passar. São sentimentos necessários, determinantes. O grande impulso em direção contrária ao ócio, ao lodo e a areia movediça em que me encontro. E não pretendo voltar a pisar aqui.
- E tudo o que passou?
- Olhando sempre adiante, sempre em frente, nunca para trás. Vou e vou mais forte.
- Ah você vai?
- Eu vou. Mas não consigo ir em silêncio.



domingo, 10 de maio de 2009

Desengano


Era uma menina que só se enganava. Não era por mal, e ela era sempre a última a perceber. Isso porque não fazia nada sem a obstinação de que era certo, ia de coração, não importa o que fosse. E se enganava. Um dia pegou o metrô, embarcou no Ana Rosa e ficou ali reparando no casal que se beijava com a marmita vazia no colo, na criança de Black no cabelo, na calça xadrez do moço que entrou... Estranhou quando ouviu que a próxima estação era Conceição. Estava do lado errado, queria ir pro Tucuruvi. Desceu afobada e foi pro lado certo. Sorriso amarelo, sabia que sempre se enganava. Mas se aceitava assim e não gostava quando as pessoas diziam que ela era enrolada, perdida. Ela se enganava e fazia isso de coração. Fim de tarde de outono e ela resolveu que ia pra praia, pegou a Anchieta, abriu a janela ao som de Cat Stevens e segurou o chapéu pra não voar. Mas as placas indicavam o Piraporinha e logo ela viu que se enganou de novo. Voltou e foi pro lado certo falando todos os palavrões que sabia e inventando mais alguns, mas depois riu porque ela era assim mesmo. E de manhã, o cinza predominou e não dava praia. Ela resolveu tomar um pingado, como fazia todas as manhãs. E estava feliz, porque até então era uma pessoa no meio da cozinha, depois de uma noite muito bem dormida, ainda de pijama, uma revista de moda na mão e um pingado na outra. Ela ficava feliz com essas coisas. Mas bastou o primeiro gole para o sal inundar sua boca e ela perceber que confundiu os potes e salgou o matinal. A outra metade do gole saiu pelo nariz. E ela seguia assim, feliz antes do engano. Enquanto acreditava estar no caminho certo, que seria agradável o sabor das coisas, estava bem e era isso que importava. Ela não gostava das críticas e preferia acreditar no seu coração. Mesmo quando se enganava. E como se enganava.... A menina.
ps, na foto: cena típica. Parada no trânsito, perdida e sem gasolina.

sábado, 9 de maio de 2009

Heranças





Há 30 anos, não muito longe daqui, no bairro do Bexiga, uma morena muito gata iria prum boteco afogar as mágoas do fim de um namoro de oito anos com mais duas amigas. No bar havia um cabeludo mundrungo, com cara de quem voltou a pé do Woodstock. Só que o cara era bom de papo. E pensava alto, o que era melhor. Quando as moças resolveram ir embora, ele puxou a mais bonita pelo braço, pediu o telefone. No dia seguinte ele ligou e marcou um encontro. Ela tinha perdido a prática de encontros, pintou as unhas de laranja. A primeira frase que ele disse foi:
- Que esmalte horroroso.
A segunda não deu tempo porque ele tascou um beijão na boca dela. Depois de seis meses eles se casaram. Ele morava no Rio de Janeiro e veio pra cá. Compraram uma Brasília, um projetor e eram felizes vendo slides, ouvindo Chico Buarque, bebendo vinho bom quando dava e vagabundo quando não dava.
Dessa união surgimos eu e meu irmão, Pablo. Fomos crianças muito criativas e unidas. A morena gata e o hippie ficaram juntos por 17 anos. No dia do casamento fizeram um bolão, aquele que chutou mais alto, apostou que o casório duraria seis meses. Como dizer que não deu certo? Se durante esses 17 anos, nunca vi um desrespeito por parte dos dois, se eles se separaram, mas todos os Natais passamos juntos, com os namorados deles, e quem mais for querido para nós e tiver afim de festa.
Quando eu estava pra nascer, meu pai apareceu com um radinho de pilha e colocou um som pra minha mãe se distrair. Era “Drão”, do Gilberto Gil, até hoje ela chora quando escuta, considera “a nossa música”. A letra fala sobre a transformação de um amor, não no fim, como precipitadamente interpretamos a palavra “separação”. Meu pai e minha mãe comprovaram que o amor se transforma. O tempo inteiro. Só acaba se a gente faz dele indiferença, rancor, mas ainda assim se transforma. E acho que essa foi umas das lições mais importantes que a minha mãe me ensinou. Tudo bem que ela também me ensinou muitas músicas de palavrão, como quando começava a musiquinha do Fantástico e ela cantava gargalhando, no mesmo ritmo:
- É fantástico! Caralho de plástico! Boceta de elástico! É o cu da vida!
E para o dia das mães, armaremos um churrasco da pesada aqui em casa. Do jeito que ela gosta: Com caipirinha, violão, e banana com sorvete de sobremesa. Meu pai também vem. Nós vamos celebrar mais uma vez as transformações da vida.